quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Instituição e Acontecimento: (Notas sobre as tensões entre o eclesiástico e o eclesial no interior da Comunidade Cristã) - Parte 1

Instituição e Acontecimento:
(Notas sobre as tensões entre o eclesiástico e o eclesial
 no interior da Comunidade Cristã) - Parte 1

                                                                                               Zwinglio M. Dias





Artigo apresentado na Igreja Metodista em Bela Aurora por ocasião do recebimento da comunidade de Belém (PA) como membros. 

Introdução


Tanto a análise do desenvolvimento histórico da instituição Igreja  como o estudo do acontecimento fundamental que deu origem ao cristianismo - ou seja, a totalidade do acontecimento cristológico - exigem um tratamento interdisciplinário que ultrapassam, e muito,  as possibilidades de um enfoque da natureza do que nos é permitido apresentar num pequeno texto como este.

Mas, o problema está colocado pela própria realidade que nós, com nossa dupla identidade de latino-americanos e cristãos, experimentamos no interior de nossas instituições eclesiásticas e de nossas sociedades como um todo. As transformações históricas vividas pelas sociedades latino-americanas, especialmente nos últimos 50 anos,  impactaram as Igrejas e mudaram, positiva ou negativamente, suas atividades e formas de relacionamento com estas sociedades. Isto, por sua vez, produziu não poucas tensões entre os cristãos que, embora unidos  numa mesma intenção de fidelidade ao Evangelho, se encontram ideologicamente divididos em relação ao projeto histórico que propugnam para suas sociedades. Estas divisões atravessam as separações históricas que deram origem às diversas instituições eclesiásticas protestantes; também se encontram no interior do Catolicismo e já ultrapassaram as diferenças teológico-doutrinárias entre este e o Protestantismo. Trata-se de um verdadeiro divisor de águas ideológico que está na base das formas de mediação histórica do acontecimento cristão primordial, na medida em que este se foi cristalizando numa forma institucional. 

Com estas ressalvas procuraremos destacar alguns elementos que estão na raiz das tensões criadas pela interação dialética entre o Eclesiástico (ou seja, o oficial, o que parte da estrutura normativa da instituição eclesiástica e que configura o seu discurso) e o Eclesial (isto é, as manifestações que irrompem no meio dos cristãos reivindicando maior grau de fidelidade ao acontecimento-fonte, a Ecclesia do Novo Testamento,  e contradizendo o discurso “ortodoxo” da instituição) que, em forma dramática, caracterizaram até aqui a prática cristã-evangélica, tanto no Ocidente como no Oriente e, de forma particular,  em nosso continente. E isto faremos com o objetivo de destacar o lugar e a importância da persistência de tais tensões no seio da comunidade cristã global (com suas instituições, grupos de base, movimentos, etc.) como a única forma de manter-se aberta à atuação sempre inédita do Espírito e não deixar-se instrumentar pelos diferentes grupos de poder que, instituindo-se na sociedade e nas estruturas organizacionais eclesiásticas, procuram, uma e outra vez, domesticar os portadores do testemunho do Evangelho para torná-los transmissores de sua particular e interessada visão-de-mundo.

Metodologicamente, vamos ocupar-nos, em primeiro lugar, ainda que de forma sumaríssima e limitada, do processo de formação da Igreja, examinando alguns aspectos do relato neotestamentário e, em seguida, procuraremos destacar algumas das características da instituição como fenômeno social e da Igreja como instituição sociologicamente marcada para destacar as tensões oriundas da dialética constitutiva de seu ser-no-mundo. Isto é, trataremos do conflito sempre presente entre carne e espírito, lei e graça, obras e fé, conservação do passado e abertura ao futuro, memória e esperança, ou... instituição e acontecimento.

Procuraremos, portanto, estabelecer um marco histórico-teológico de referência e um marco sociológico de análise que nos possibilitem um novo horizonte de reflexão capaz de ajudar-nos a superar as tentações de unilateralismo que nos levam a ver, ou  nas instituições eclesiásticas históricamente dadas ou nos acontecimentos eclesiais de emergência recente, o único meio de manifestação do Espírito, amputando assim um dos termos da relação dinâmica que preside a ação do Espírito  nos entremeios da experiência humana. Seguindo a acurada reflexão desenvolvida pelo teólogo reformado suíço, H. Emil Brunner,(1) tentaremos, de forma modesta, mas conseqüente, inquirir a respeito da continuidade histórica da Igreja, em suas formas históricas institucionais, em relação à comunidade de Jesus (a koinonia christou ou koinonia pneumatos ), ou seja,  a Ecclesia do Novo Testamento.

 

A emergência Histórica da Igreja


1- Falar da instituição eclesiástica e do acontecimento fundamental que a trouxe à existência não significa, simplesmente, falar da Igreja, uma vez que esta expressão é, historicamente, “obscura e ambígua”, para dizer como Lutero.  Antes, implica em compreender o que foi o movimento de Jesus, conforme os relatos do Novo Testamento, e procurar seus vestígios nas diferentes concreções históricas assumidas, ao longo do tempo, pelas formas eclesiológicas que se querem herdeiras da Ecclesia primordial.  Uma rápida mirada  às páginas do relato neotestamentário nos permite inferir duas coisas com respeito à formação da Igreja cristã:

(a) Jesus anunciou o Reino de Deus, mas não se preocupou em “programar” a Igreja para os tempos vindouros.

Toda a pregação e ensino de Jesus estiveram centralizados numa única preocupação: a proclamação da instauração e realização a partir dele, do Reino de Deus. Sua vida se caracterizou por uma acentuada ênfase escatológica que o enquadrou na linha dos grandes profetas de Israel. A luta que manteve com as autoridades religiosas de seu tempo se inscreve no tradicional conflito entre profetas e sacerdotes do Antigo Testamento e a multidão o seguiu porque viu nele a continuidade da grande tradição profética israelita. Seu anúncio não foi outra coisa que a proclamação do cumprimento da promessa uma vez feita ao povo escolhido. Cumprimento este que se realiza nele, que surge como portador e instaurador do Reino de Deus entre os humanos. Nesta perspectiva escatológico-messiânica não há lugar para a Igreja, que só vai aparecer depois da ressurreição.

Os doze que ele chamou para que o acompanhassem em seu trabalho não foram convocados para se constituírem no grupo inicial de uma suposta sociedade jesuânica, como muitas vezes somos levados a pensar; eles simbolizavam, escatologicamente, o juízo e a restauração das doze tribos de Israel (Mt 19, 28; Lc 22, 29). A importância dos discípulos não se baseava no fato de serem eles apóstolos (isto ocorrerá depois)  mas no fato de que eram doze. Tanto é assim que o evangelista Marcos quando se refere a eles os faz sempre com a expressão “os doze”. (2)

Na  proclamação  de  Jesus o Reino tem uma significação essencialmente  escatológica. Não se trata de uma teocracia nacional, geograficamente delimitada e politicamente configurada, como era esperado tanto pelo judaísmo oficial como pelos grupos messiânicos então existentes (zelotes, essênios etc.). Para ele, o Reino se traduz num novo ordenamento histórico do mundo cujo centro é Deus mesmo. Sua pregação, neste sentido, se dirige fundamentalmente a todos os judeus, a todo Israel como povo escolhido, para tornar realidade esse Reino entre os humanos. Seu objetivo, portanto, não é formar  mais uma facção ou tendência, ao lado de tantas outras já existentes, mas a conversão do Povo de Deus (Israel) à vontade soberana do Deus da aliança, de modo a levar à prática a promessa  uma vez feita a Abraão de que nele “serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12. 3). Sua pregação, portanto, é particularista. Mas, trata-se de um particularismo que não se esgota em si mesmo, porém se constitui no fundamento da intenção salvífica universal de Deus, cuja eficácia histórica só se concretizará por meio da eficácia do Povo. Escatologicamente,  a salvação de todos (a Humanidade) depende da conversão de alguns (Israel). A realização do plano universal de Deus dependia, pois, da eficácia histórica da atuação de um grupo como sinal do Reino, da nova ordem de relações a ser instaurada entre os humanos. É neste sentido que devemos compreender as expressões metafóricas “sal da terra”, “luz do mundo”, “levedo na massa”, etc.
Os modernos tratamentos exegéticos dispensados aos documentos que constituem o Novo Testamento são unânimes em constatar que a Igreja que nós conhecemos a partir dos relatos dos Atos dos Apóstolos não fazia parte dos planos de Jesus. Mesmo nos relatos sobre a Santa Ceia, narrados pelos evangelistas, não há evidência do contrário como, tradicionalmente se pensava. Como muito bem assinalou L. Boff: “As várias ceias que Jesus realizou não só com os discípulos, mas especialmente com os marginalizados, social e religiosamente, possuíam um significado salvífico-escatológico: Deus oferece a salvação a todos e convida indistintamente bons e maus à sua intimidade. O caráter escatológico da última ceia, como símbolo da ceia celestial dos homens no Reino de Deus, transparece muito claramente no texto lucano” (3) .
 

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(1)  Cf. Brunner, H. Emil, O Equívoco sobre a Igreja, São Paulo: Novo Século, 2004.
(2) Cf. Boff, L., Eclesiogênese, Petrópolis: Vozes,  1977. P.59
(3) Idem, pg. 62
  

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