RELIGIÃO
Inquisição moderna
Acusada de bruxaria e expulsa, pastora metodista ganha ação por danos morais na Justiça
Eliane Brum
Eliad Dias dos Santos sofre há três anos uma perseguição religiosa que lhe tirou trabalho, sustento e amigos. Pastora metodista há 14 anos, ela escolheu atuar na área social, junto às mulheres de rua. Em setembro de 2001, quando trabalhava na Comunidade Metodista Povo de Rua, em São Paulo, foi expulsa pelo então bispo da região, Adolfo Evaristo de Souza, depois de um encontro com prostitutas em que contava sobre a Inquisição e a caça às bruxas. Na carta em que comunicava o 'afastamento compulsório' de Eliad - sem direito a processo, defesa e julgamento -, o bispo justificou a decisão pela 'identificação' da pastora com 'ideologias radicais' e 'defesa e ênfase da mulher como bruxa'. Mais tarde, voltou atrás na expulsão, mas a manteve sem nomeação e subsídio (salário). Depois de esperar sete meses por uma reparação, Eliad entrou na Justiça. Em março, a Igreja Metodista foi condenada a pagar cem salários mínimos à pastora por danos morais. Não pagou. Preferiu recorrer e manteve Eliad no limbo. Desta vez, os bispos entenderam que ela havia incorrido em outra transgressão: o Colégio Episcopal determinou que os membros da igreja que entrarem na Justiça contra a instituição 'serão exonerados compulsoriamente'.
O advogado da pastora, Luiz Roberto Saparolli, vai ingressar nesta semana na Justiça Eclesiástica com uma ação de inconstitucionalidade. 'A igreja tem de se submeter à legislação civil', critica. 'Qualquer pessoa tem o direito de entrar na Justiça e a garantia de que não será punida por isso. Não estamos nos Anos de Chumbo.'
Todas as tentativas de acordo extrajudicial terminaram em fracasso até agora, com acusações de intransigência de ambas as partes. 'Não estamos denegrindo a imagem da pastora', disse a ÉPOCA o bispo João Alves de Oliveira Filho, presidente do Colégio Episcopal. 'O bispo que a afastou por bruxaria falhou ao tomar a decisão sem passar por todos os trâmites previstos pela igreja. E ela também falhou ao não esgotar as possibilidades internas e entrar na Justiça.' O próprio bispo-presidente, que afirmou considerar a acusação de bruxaria uma 'tolice', admite que rejeitou a queixa da pastora. 'Eu achei inepta, mas ela poderia ter recorrido à comissão geral, o nosso STF, em vez de entrar na Justiça', justifica. Procurado por ÉPOCA, o bispo Adolfo não quis dar entrevista.
Aos 38 anos, Eliad está alquebrada. 'Me tiraram tudo. Me deixaram sem salário, sem o trabalho em que acredito e botaram a comunidade contra mim. Eu não durmo porque não sei como vou comer no dia seguinte ou pagar a mensalidade da escola da minha filha', desabafa. 'O que pode ser pior que isso hoje em dia? Só falta me botarem na fogueira.' Eliad recusou todas as negociações em que a igreja lhe pediu para se retratar. Passou a sofrer de hipertensão. Mestre em Teologia e História, há três anos ela vive da ajuda de amigos e de trabalhos temporários - até como faxineira.
No encontro em que Eliad falou sobre a Inquisição, as mulheres leram juntas uma poesia: 'Sou uma bruxa? É claro que sou! Eu e todas as mulheres que, como eu, questionam o óbvio e não compactuam com as injustiças, mas não quero queimar na fogueira de uma sociedade hipócrita...'. Depois, comeram bolo de cenoura e tomaram chá de mate com cravo. No relatório que chegou ao bispo, além da descrição da suposta bruxaria, membros da igreja demonstravam seu incômodo porque a pastora falara sobre 'aborto' e 'orgasmo'. 'Ela disse que a mulher não tem de ser submissa ao homem', denunciou uma colega no documento. Ao acusar Eliad, o bispo apontou para um adesivo no carro da pastora: 'Bruxa a bordo'.
A Inquisição, que durou do século XII ao XIX, foi instituída pela Igreja Católica para julgar os hereges - entre eles, aqueles que praticavam magia. O caso mais famoso do período medieval foi a francesa Joana D'Arc, queimada viva. Mas a caça às bruxas não foi restrita aos católicos. Tribunais protestantes, como o dos anglicanos de Salem, nos Estados Unidos, no século XVII, perseguiram e mataram feiticeiros com igual empenho. 'A mística do saber feminino e a sexualidade indomável entram como uma questão programática do movimento feminista', aponta Laura de Mello e Souza, professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo. 'Mas a caça às bruxas é um fenômeno histórico mais amplo, que não se restringe à perseguição das mulheres. Já, hoje, acusar alguém de bruxaria é sem pé nem cabeça.'
Eliad pertence a um grupo ecumênico de mulheres que se dedica ao que se convencionou chamar de teologia feminista: incorporar no estudo da Bíblia a experiência das mulheres. Foram elas que trouxeram ao debate religioso temas incômodos como o aborto e a sexualidade. Suas teses tiveram mais força nos anos 80 e parte dos 90, mas, assim como a Teologia da Libertação, perderam espaço no confronto com as correntes pentecostalistas e carismáticas que cresceram entre protestantes e católicos. Para as teólogas feministas, Eliad é a vítima extrema de um embate mais profundo travado no coração das igrejas cristãs. Ao se levantar contra uma decisão arbitrária da igreja, ficou sozinha, expondo as fissuras do movimento.
'A Eliad sofreu uma inquisição moderna', diz a teóloga Yury Orozco, do Católicas pelo Direito de Decidir, o mais importante grupo religioso feminista do país. 'Sua heresia foi confrontar sua igreja com temas novos.' Em 1995, a freira Ivone Gebara foi condenada ao silêncio pelo Vaticano por ter se manifestado publicamente em favor da descriminação do aborto. 'Vivemos um retrocesso e muitas de nós, que foram ativas no passado, recuaram e silenciaram, a ponto de se negar a testemunhar em favor de Eliad', diz a pastora luterana, mestre em Ciências da Religião, Haidi Harschel. 'Hoje estamos na marginalidade, em nome de uma religião de mercado, individualista, que demoniza o corpo e os movimentos sociais', aponta a doutora em Bíblia e pastora metodista Nancy Cardoso Pereira. 'A Eliad teve mais coragem que a maioria de nós.'
ELIAD DIAS DOS SANTOS
Maurilo Clareo/ÉPOCA
Formação - Mestre em Teologia e História pela Umesp
Atuação - Pastora metodista e militante feminista, trabalha com prostitutas e mulheres de rua
Punição - Afastada por 'bruxaria', depois de falar sobre a Inquisição para um grupo de mulheres
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT757593-1664,00.html
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