No Brasil, as pedras clamam pelo povo negro brasileiro
Eu lhes digo, se eles se calarem, as pedras clamarão
Lc 19:40
Rolf Malungo de Souza[1]
Falar sobre racismo no Brasil é falar de um tema tabu. Este assunto tido como inaceitável, cria constrangimentos, podendo, inclusive, gerar reações violentas. E, embora tenhamos informações objetivas produzidas por órgãos de pesquisa do Governo Federal[2] que demonstrem que as diferenças entre negros/as e brancos/as no Brasil são escandalosas, quem insiste em denunciar estas injustiças, mesmo utilizando estas informações é acusado/a de tentar trazer para o Brasil algo que não existe, de criar um racismo ao contrário, ou de querer imitar os EUA, país que tem seu passado marcado pela discriminação e pela segregação racial e que no presente mantém excluídos dos benefícios plenos da cidadania os negros/as daquele país[3]. No Brasil, a questão racial, que já foi questão de segurança nacional[4] por colocar em xeque a identidade nacional, foi construída a partir do mito da democracia racial que procura mostrar a excepcionalidade brasileira[5], onde haveria uma relativa tolerância nas relações raciais desde os tempos coloniais, apesar de ter havido inúmeras revoltas e lutas sangrentas contra a escravidão que foram sempre reprimidas de forma igualmente violenta. Até hoje negras e negros lutam cotidianamente contra uma estrutura de poder que nega o racismo, mas ao mesmo tempo, massacra o povo negro, com atenção especial para as mulheres e jovens negros. Os dados ilustram o quanto a sociedade brasileira é racialmente injusta[6]:
Segundo o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil, publicado pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER/UFRJ), os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que 77,9 % da população pobre é negra, enquanto 72,9% da população mais rica da população é branca. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos negros em 2005 era equivalente à 95ª posição no ranking mundial, já o IDH da população branca respondia à 51ª posição no ranking. O detalhamento das mortes por causas externas do Mapa da Violência de 2011[7] mostram que os negros são vítimas preferenciais da violência. Nos estados mais ricos do Brasil a situação é a seguinte:
Mesmo com a diminuição gradual do número geral de homicídios, o número de negros mortos continua sendo maior que os números de brancos como mostram os números e se repetem quando olhamos os dados sobre jovens com idades entre 15 e 24 anos:
Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) confirmou em 2010 que o percentual de negros mortos, com idades entre 15 e 24 anos, é maior do que o de brancos. A faixa etária representa quase 10% dentre as mortes anuais de homens negros, enquanto que esse número não chega a 4% para os brancos. Nas duas raças, a principal causa de óbitos são as doenças do aparelho circulatório – cerca de 28,5% dentre as mortes do sexo masculino na população branca e 25%, na negra. As causas externas (assassinatos e acidentes) estão em segundo lugar entre o que mais mata os homens negros. Entre os homens brancos, vem em terceiro lugar. Pesquisas produzidas pelo Centro de Estudos Sociais (CESeC)[8] apontam a polícia do Estado do Rio de Janeiro e os traficantes de droga como os principais algozes de negros adultos e jovens. Estes são apenas alguns dados sobre mortes por causas externas. Os dados sobre saúde e educação também não são melhores.
Apesar destes dados, o Movimento Negro na sua luta contra o racismo tem conseguido alguns avanços, um deles foi a implantação de políticas de Ações Afirmativas em várias instituições públicas, em especial a adoção de cotas nas universidades públicas para afrodescendentes se configurando uma das maiores conquistas e também principal alvo de crítica dos setores reacionários[9] que, mais uma vez, insistem em negar as injustiças conta o povo negro no Brasil. Estes setores são os mesmos que se beneficiam do poder público há gerações, alegam que a discussão sobre igualdade racial é negar que todos os brasileiros/as são iguais e reconhecer estas diferenças poderia dividir o Brasil, baseando seus discursos de que na realidade o que há é uma discriminação por classe, quando os dados e as experiências cotidianas comprovam que uma vez superada a barreira econômica isso não significa a superação da barreira étnico-racial.
Outro argumento utilizado por estes grupos é não haver sentido falar sobre diferenças raciais já que a Ciência diz que não existem raças entre os seres humanos, mas somente uma raça, a raça humana, assim além de ser perigosa, estas discussões não têm fundamentação científica, entretanto, o que estas pessoas fazem é se utilizar de um sofisma para mascarar a realidade. O conceito de raça utilizado pelos grupos anti-racistas é um conceito antropológico, ou seja, raça é construída sobre valores atribuídos à cor da pele, tipo de cabelos, nariz, etc. e estes fenótipos criam estereótipos racializados que estruturam as relações de poder no Brasil, pois eles servem para criar e manter a hegemonia branca.
Entre os setores mais impermeáveis a qualquer discussão sobre a questão racial, a igreja evangélica brasileira é um pilar de insensibilidade. Com o argumento de que “Deus não faz acepção de pessoas” (At 10:34) e que na igreja somos todos irmãos/ãs e que esta discussão poderia “trazer um problema do ‘mundo’ para dentro da igreja”. Criam-se obstáculos que fazem com que seja praticamente impossível discutir a questão racial nas igrejas evangélicas no Brasil, salvo raríssimas exceções. Entretanto, em conformidade com este mesmo “mundo” que a igreja quer negar, as diferenças são reconhecidas e afirmadas, mas através de péssimos testemunhos, pois as relações de poder são as mesmas dentro e fora da igreja. As lideranças nas igrejas são masculinas e brancas. Os negros/as quase sempre estão nos ministérios da música, nas cantinas e cozinhas, nos estacionamentos e portarias. Não raro, ouve-se que sonhar com um homem negro é mau presságio, que o pecado é negro e a África, um lugar amaldiçoado desde os templos bíblicos.
Um exemplo recente deste tipo de pensamento foi a declaração de um pastor chamado Marco Feliciano, que também é deputado federal, e conhecido por suas declarações homofóbicas, sexistas e racistas. Em abril deste ano, este pastor publicou na sua página de uma rede de relacionamento que “A maldição de Noé sobre Canaã toca seus descendentes diretos, os africanos”. Tais afirmações racistas ditas como se fossem verdades bíblicas ignora o quando Deus ama a toda a criatura humana igualmente e que, inúmeras vezes, nosso Senhor declara seu amor aos mesmos africanos que são chamados por ele de malditos, contrariando a Palavra de Deus. Neste episodio, mas uma vez, as pedras clamaram pelo povo negro brasileiro. Os movimentos sociais pediram satisfações e processaram o pastor/deputado. No meio evangélico somente o Movimento Negro Evangélico se manifestou publicamente. As igrejas cristãs, evangélicas e católica se calaram. Estes testemunhos fazem com que o diálogo entre as igrejas evangélicas e o Movimento Negro seja muito difícil. Os negros e negras cristãos são vistos com desconfiança pelos militantes, mesmo os que são do chamado movimento negro evangélico, pois são rotulados como traidores da história e das tradições africanas, por estarem em um espaço branco e eurocêntrico. Somado a isso, o fato de que no Brasil um número significativo de membros das igrejas evangélicas é oriundo da umbanda e do candomblé e após sua conversão assumem uma postura de total rejeição a qualquer símbolo ou referenciais africanos, relacionando-os as religiões de matriz africanas.
Meu povo foi destruído por falta de conhecimento.
Oséias 4:6
No ano de 2001 o então presidente Lula assinou uma lei que incluiu no currículo oficial da rede de ensino brasileira a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, uma antiga reivindicação do Movimento Negro Brasileiro. Depois da promulgação da Lei surgiram alguns desafios um deles foi a resistência de parte dos profissionais da Educação que não viam relevância na implementação desta disciplina, o que foi resolvido pela própria obrigatoriedade desta. Outro desafio, e talvez o mais complicado, foi a falta de pessoal qualificado para disciplina, uma vez que as universidades brasileiras não oferecem nos seus currículos, tanto nas licenciaturas quanto no bacharelado, disciplinas que qualifiquem profissionais para ministrar História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Este cenário deve mudar em poucos anos com os primeiros concursos abertos nas universidades para professores de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, porém, sem tempo a perder, mais uma vez o Movimento Negro se fez presente. Organizou cursos de pós-graduação e extensão em História e Cultura Afro-Brasileira e Africana para qualificar os profissionais de educação para ocuparem as vagas abertas para esta disciplina.
E nos cursos de Teologia? Em uma rápida pesquisa em algumas importantes faculdades e universidades de Teologia, verifica-se que não há disciplinas sobre a questão étnico-racial nos programas, nem mesmo tópicos especiais que façam com que os/as alunos/as se familiarizem com as questões ligadas a História e Cultura Africana e Afro-brasileira. Há uma preocupação com a cultura em um sentido mais amplo, generalizante, quase superficial, sem discutir ou pensar em estratégias de combate e superação do racismo no Brasil. Talvez uma forma de modificar este cenário fosse adotar estratégias semelhantes as do Movimento Negro, reunir pessoas qualificadas e com conhecimentos sobre a discussão dentro e fora do espaço eclesiástico para formar grupos de trabalho com duas frentes: sensibilização de diretores/as dos seminários e cursos de Teologia e lideranças para a relevância da temática e; preparar cursos que qualifiquem os profissionais de educação nos seminários e escola dominical.
[1] Rolf Malungo de Souza é membro da Igreja Metodista do Brasil e doutor em Antropologia, pesquisa gênero masculino e relações raciais, tendo publicado livros e artigos sobre o tema.
[2] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
[3] MEDEIROS, Carlos Alberto. Na Lei e na Raça Legislação e Relações Raciais, Brasil e Estados-Unidos. Rio de Janeiro, Dp&a. 2004
[4] Um dos mais conhecidos militantes do Movimento Negro no Brasil, Abdias Nascimento, saiu do Brasil por ser um militante e discutir a questão racial durante a ditadura militar
[6] É claro que no Brasil há injustiças com os pobres, mulheres, etc., mas quanto estes são negros, as injustiças se agravam.
[9] Estes setores são compostos por parte pessoas eminentes de academia brasileira, como antropólogos, sociólogos, geógrafos e importantes jornalistas das mais poderosas redes de TV brasileiras, alguns que fizeram suas carreiras justamente discutindo a questão racial. Há também deputados e senadores de partidores de direita, que alias entram na justiça para barrar qualquer decisão que tente criar mecanismos que tentem diminuir as desigualdades ente negros/as e brancos/as, as cotas raciais, por exemplo.
LA REALIDAD DEL RACISMO HOY EN AMERICA LATINA Y EL CARIBE Y SUS DESAFIOS A NUESTRAS IGLESIAS Y ORGANISMOS ECUMENICOS. CONFERENCIA DEL CMI EN HERMANDAD CON EL CLAI. NICARAGUA, JUNIO 22-25 DEL 2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário