domingo, 1 de julho de 2012

Faleceu José Míguez Bonino

Faleceu José Míguez Bonino


Faleceu neste sábado, 30 de junho, em Buenos Aires, Argentina, um dos maiores teólogos latino-americanos, o metodista José Miguez-Bonino, aos 88 anos, Doutor Honoris Causa pela Universidade Metodista de São Paulo, em 2005. A morte de Miguez-Bonino representa mais uma grande perda para o Protestantismo e para o movimento ecumênico em 2012, somando-se à do biblista brasileiro Milton Schwantes.


Leia a entrevista José Míguez Bonino: reflexão e missão na América Latina, publicada pela Revista Novos Diálogos, em 25/2/2012.







Víctor Rey entrevistou alguns anos atrás José Míguez Bonino, pastor metodista, argentino, teólogo reconhecido, professor emérito do Instituto Superior de Estudos Teológicos (ISEDET); membro da Constituinte que deu à luz a nova Constituição argentina. Pensador destacado e décano dos teólogos evangélicos latino-americanos. Publicou Rostos do protestantismo latino-americano, pela Editora Sinodal, e Em busca de poder: Evangélicos e participação política na América Latina, pela Novos Diálogos. Víctor autorizou gentilmente a tradução e reprodução da entrevista [...] na Novos Diálogos…



Pode nos contar um pouco de sua vida?
Sou filho de dois imigrantes, pai galego e mãe italiana, trabalhadores do porto. Converteram-se aqui [na Argentina]. Minha mãe se converteu primeiro e meu pai a seguiu. De modo que eu estive desde pequeno na Igreja Evangélica Metodista e participei ativamente na juventude até quando senti, estudando na Faculdade de Medicina, a vocação para o ministério. Então, vim estudar teologia em Buenos Aires, e logo ingressei no pastorado da Igreja Metodista.

Assumi o pastorado como estudante na Bolívia, por um ano, e depois em Mendoza, em Buenos Aires. Então o bispo da Igreja me convidou a fazer um curso de pós-graduação para trabalhar na educação teológica. Fiz nos Estados Unidos, na Faculdade Metodista, e depois no Union Seminary, em Nova Iorque. Voltei para ensinar aqui de 1954 até 1958, e depois do doutorado em 1960, fui encarregado da direção do que era então a Faculdade Evangélica de Teologia que, ao se unir com a Faculdade Luterana de Teologia, formou o que é agora o ISEDET [Instituto Superior Evangelico de Estudios Teologicos].

Enquanto isso sempre mantive um vínculo com a igreja local, em alguns casos como pastor titular e em outros como pastor associado; e, eventualmente, por diferentes circunstâncias tive participação na Comissão de Fé e Doutrina do Conselho Mundial de Igrejas. Diria que duas ou três coisas que me marcaram foi, por um lado, a experiência que tive — justamente por participar no Movimento Ecumênico — de conhecer as igrejas da Europa, África e Ásia, e sua problemática, e a oportunidade de viajar bastante pela América Latina.

A segunda coisa foi durante o período do governo militar na Argentina. Ou melhor, pouco antes do governo militar, a formação da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos, com a participação de pessoas de diversas extrações políticas, religiosas, ideológicas e culturais. A Assembleia teve a responsabilidade, junto com outras organizações, de defender os Direitos Humanos, assim como a proteção, até onde fosse possível, e o apoio às pessoas que sofreram perseguição durantes estes anos. Negociou uma visão que me parece muito significativa, em relação aos esforços de solidariedade dentro da sociedade civil e o valor que eles têm nos momentos de crise.



Quais foram os fatores, autores e livros que mais contribuiram na sua formação como teólogo?
Em primeiro lugar, obviamente, fora todo o resto, a Bíblia. Eu estou convencido, desde minha infância, que finalmente ali se encontra, não respostas prontas, mas direção, condução e orientação, de modo que há a necessidade de voltar constantemente à Bíblia. Depois, eu diria que as coisas que eu li me ajudaram a examiná-la melhor. Do ponto de vista do estudo, são muito significativos para mim os comentários e trabalhos que contextualizam a História Bíblica, saber o que queria dizer, o que fez um Isaías, um Jeremias, em seu tempo, o tipo de sociedade que Jesus anuncia e o significado que tem. Ver o mundo helenístico no qual entra Paulo e como consegue falar o idioma desse mundo, sem trair nem mudar em nada a centralidade da fé.

Todo o campo de estudos bíblicos que se abre enormemente na Europa e, em particular, nas décadas de 1950, 1960 e 1970 me ajudaram muito e foi uma fonte de inspiração.

Por outro lado, talvez o tema teológico que se colocava aos estudantes de teologia na década de 1940, quando estudei, era que, por um lado, tínhamos uma herança religiosa muito pietista, muito evangélica, centrada na salvação em Jesus Cristo, na busca da santidade, na direção do Espírito Santo. Muito centrada na experiência da conversão e no crescimento da fé. Além disso, havia entrado todas as tendências liberais que nos interessavam, porque nos punha em contato com a cultura de nossos povos e como jovens evangélicos argentinos, sentíamos a necessidade de entrar e participar da cultura, da vida social de nossos povos.

Então, nas tendências liberais, especialmente no que se chamou de “evangelho social”, encontramos uma orientação para essa nossa preocupação com a cultura, com a sociedade. Mas ao mesmo tempo notamos a debilidade teológica dessa orientação, na busca de relacionar nossa tradição bíblica teológica evangélica com a preocupação social, com o âmbito cultural. Para mim e para muitos companheiros, a teologia de Barth foi sumamente significativa. Este era um teólogo que havia chamado a teologia de volta às Escrituras, mas que ao mesmo tempo participava ativamente da luta contra o racismo.

Assim, creio que isto nos atraiu e aprendemos muito. Para mim, pelo menos, foi significativo ler primeiramente alguns artigos de Barth, depois o livros sobre Romanos, a Teologia Sistemática, e junto com ela, a de outros autores ligados ao despertar teológico europeu de origem reformada, por exemplo, que nos ajudou. Também Ray Hollinworth, que critica fortemente o evangelho social por sua debilidade teológica e por seu idealismo utópico, mas ao mesmo tempo está preocupado em como se pode construir uma sociedade moral, uma vida mais justa e mais digna.



Poderia nos dar uma breve definição do que é a teologia?
Já que mencionei Barth… uma definição barthiana que para mim segue sendo vigente é a teologia como a reflexão da Igreja, à luz das Escrituras, sobre sua missão no mundo. Ainda é a melhor definição que conheço.

A que se deve que na América Latina a teologia não tenha muita presença e qual seria o futuro da teologia na América Latina?
A teologia na América Latina foi sempre uma teologia importada. Desde o princípio, a teologia espanhola da conquista foi uma teologia importada; a teologia protestante, tanto das igrejas de imigração como das igrejas de missão foi importada. Isto não me escandaliza, porque em qualquer lugar do mundo onde chega o Evangelho, alguém tem que trazê-lo. Um povo não inventa o Evangelho, tem que recebê-lo. E tem que recebê-lo de maneira que se possa dizer que toda a teologia foi de alguma forma importada, desde o nascimento do cristianismo, desde que a Palestina foi levada por Paulo ao mundo helenístico e depois muitos outros a várias partes do mundo.

Isso não me preocupa sempre que em algum momento essa teologia herdada comece a ser refletida, interpretada com relação à vida do povo onde está se enraizando o Evangelho, que leve em consideranção as experiências históricas, sociais e a tradição, mas isto não havia ocorrido na América Latina.

Há alguns textos que poderíamos mencionar, bem esporádicos, onde se tenta; mas diria que, até a década de 1940 ou 1950, não há uma tentativa séria de pensar sobre a fé recebida, herdada, vivida, e pensá-la à luz da problemática e necessidades de nossos povos. Então eu creio que recentemente começam a aparecer essas tentativas, estimuladas às vezes por outros autores de fora. Mas ao mesmo tempo, porque havia surgido já uma segunda geração de evangélicos e, em alguns casos, uma terceira que se sentia verdadeiramente parte de seu país. Então tentavam pensar nesta teologia.

Eu creio que é aí onde nascem, por um lado, algumas participações no que se chamou de Teologia da Libertação; onde começa a Fraternidade Teológica Latino-americana a trabalhar suas experiências, a partir de suas igrejas, a pensar a teologia como latino-americanos. Isso vai se aprofundando e eu creio que a partir das décadas de 1950 e 1960 começa a aparecer uma teologia latino-americana que as igrejas ainda não assumiram. Talvez pelo peso da tradição. Na realidade sempre aconteceu assim, mas creio que já há uma consciência teológica latino-americana que se expressa de muitas maneiras: movimentos estudantis, grupos de estudo etc. E que é bastante necessária, especialmente gente jovem de todas as igrejas evangélicas.

Pode-se também perceber nos seminários e institutos bíblicos o sentimento de que se necessita uma formação mais profunda, em termos da interpretação das Escrituras, como da teologia, da ética. Daí que creio que há um campo bem grande e que estas tentativas dos ultimos anos não devem ser consideradas como a última palavra, mas que têm que ser aprofundadas e enriquecidas.



Qual é a missão da Igreja hoje?
A missão da igreja está dada fundamentalmente pelo comissionamento evangélico. Nas distintas versões que encontramos nos relatos dos evangelhos, convida-se a pregar o Evangelho a todas as nações, não somente a todos os indivíduos, mas a todas as nações. Este evangelho do Reino será pregado até o dia do retorno do Senhor em glória. Na mensagem da vida, no Evangelho de João, o Senhor sopra para que esta mensagem da vida eterna seja anunciada.

Creio que a ênfase em pregar o Evangelho, de ser testemunhas do Reino de Deus e de anunciar a vida, são formas diferentes de uma mesma missão, mas tem que ser formas complementares. De modo que a missão não deve ser entendida simplesmente como uma proclamação oral do Evangelho; tampouco pode se entender unilateralmente como uma forma de vida em si mesma, que sem que se fale seja possível mostrar o significado do Reinado de Jesus Cristo na vida humana.

De modo que é necessário tomar em conjunto esta diversidade, esta amplitude que nos mostra a Bíblia, para uma concepção da missão da Igreja que seja o que hoje chamamos Integral — ou como alguns utilizam Holística —, se é que se refere à totalidade da vida.



Como você vê o povo evangélico neste momento na América Latina, e quais são seus pontos fortes e fracos?
Evidentemente, se se pensa de seus pontos fortes creio que o impulso missionário, o impulso de evangelizar é o princípio básico das Igrejas Evangélicas na América Latina.

As Igrejas na América Latina têm a consciência de que têm que anunciar o evangelho e que têm que convidar as pessoas a crer e a seguir Jesus Cristo. Assim, creio que isso é forte. A experiência dos últimos anos mostrou que responde a uma necessidade muito profunda de nossa população, nestes momentos de crise cultural, social, ética, nas quais setores crescentes de nossa população são lançados à marginalidade ou em situações muito precárias onde não se encontra o sentido da vida. Pareceria que todas as possibilidades estão esgotadas. Creio que a ansiedade e a necessidade que isso cria encontrou na pregação evangélica uma resposta, e por isso se dá o crescimento: estas são os pontos fracos.

Eu diria que nossa força e nossa fraqueza, ou seja, esta concentração enorme na ação missionária, às vezes, não foi acompanhada de crescimento tanto no aspecto espiritual mais profundo — às vezes cultivamos uma espécie de piedade bastante superficial; a piedade composta apenas de cantos fervorosos, de pregação incendiada está bom mas não tem raízes suficientes; assim, quando sobrevêm situações difíceis, facilmente se diluem ou o que é pior é levada a expressoes espetaculares que não me parece que tenham a profundidade e a seriedade que tem o evangelho.

Expressões puramente exteriores que são bastante contagiosas mas que, às vezes, nao geram um verdadeiro compromisso de toda a vida. As Igrejas Evangéicas estão tendo já, desgraçadamente, uma espécie de clientela religiosa que consome a religião mas que não produz a vida, ou seja, são clientes da religião mas não discípulos no sentido total de discipulado.

Também me parece que é extremamente perigoso mostrar o evangelho como um caminho para a prosperidade. Isto está entrando fortemente em alguns setores evangélicos, talvez com muita boa vontade e talvez respondendo a uma necessidade real, porque as pessoas necessitam poder viver, mas fazendo promessas que não são as promessas de Jesus Cristo — ele não nos prometeu que tudo iria bem, que todo mundo gostaria de nós, que vamos ser prósperos. Nos disse que o seguíssemos e que estivéssemos dispostos a levar a cruz, que o que deixássemos pelo evangelho nos seria devolvido em dois, três ou dez vezes mais, mas isso é graça; o propósito é segui-lo, o resto vem por acréscimo. Me parece que há aí um erro e é bastante fraco.

A outra fraqueza que estou alertando agora é justamente o fato de que pelo grande crescimento, o mundo evangélico passa a ser um ator social na sociedade latino-americana, tem peso, ainda não muito visível, mas tem peso. Então, estamos alertando para a tentação de aproveitar esse peso para buscar o poder para si, o que acredito é uma tentação bem grande.

Seria muito triste se nós que, como evangélicos, criticamos sempre o uso do poder legitimando religiosamente o uso do poder político pela Igreja Católica para seus próprios fins, terminássemos seguindo o mesmo exemplo; no lugar de pensar em uma cristandade católica, nós tentássemos agora uma cristandade protestante, o que seria igualmente grave. Eu não digo que não se deva pensar no tema do poder que é um tema importante e, graças a Deus, temos possibilidade de participar, mas saibamos a partir de onde participamos e qual é efetivamente uma forma evangélica de entender a vida política e social, porque senão corremos o risco de transformarmo-nos em clientes de quem nos ofereça mais. Assim, creio que aqui há outro campo no qual temos fraquezas. Mas novamente a fraqueza é nossa força porque chegamos rapidamente a ser significativos na sociedade sem ter preparado suficientemente a retaguarda teológica de formação que nos sirva para participar ativamente.



Como você vê a participação dos evangélicos na política, e me conte sobre sua própria participação política na Constituiente que formou a constituição na Argentina?
Eu vejo a participaçao dos evangélicos na política em princípio positivamente. Creio que o evangélico é um cidadão que tem responsabilidades pelo seu país e que deve exercê-las em todos os níveis. No nível religioso, mas também social, cultural, econômico, político, de modo que em princípio isto está bom. Pessoalmente não creio na formação de partidos evangélicos; creio que a experiência de partidos políticos confessionais no mundo inteiro não é positiva, já que cria uma confusao entre o que é o evangelho e o que é a política. Me parece que as duas coisas são muito importantes mas devem ter identidade própria: normalmente ou se juntam demasiadamente ou se separam. Ou seja, ou se vive o evangelho, por um lado, e a política, por outro, sem racionalizá-los, ou se mescla tanto que não se sabe quando se está político ou cristão. Me parece que eu diria não ao partido evangélico; para a participação de evangélicos na vida política, sim. E acredito que a experiência que tivemos nos últimos anos com a participação [evangélica] em vários lugares nos está mostrando ao mesmo tempo a possibilidade mas também os perigos. Temos já algumas experiências que nos advertem bastante. A experiência na América Central, me parece que nos chama a atenção para os perigos, e a experiência no Peru também. Por outro lado, nos mostra que, sim, há uma possibilidade. Eu pessoalmente nunca quis participar em um partido político sendo pastor; na realidade, eu fui filiado a um partido político na minha juventude, mas quando ingressei no ministério renunciei à filiação porque nesse momento me pareceram incompatíveis.

No caso da Assembleia Constituinte em 1994, me convidaram a participar como ex-filiado, ou seja, sem assumir filiação partidária, e pensei que isto era uma coisa bem diferente, se tratava não de uma questão partidária mas da Constituição da Nação, que é para todo o povo. Por outro lado, deixei bem claro que não assumia uma posição partidária, e que se houvessem pontos nos quais a posição do setor pelo qual eu participava, pelo qual tinha sido eleito, não a considerasse coerente com minhas convicções, não ia apoiar. Além disso, a Constituinte estava delimitada por um tempo e foi eleita para fazer as reformas, demorou quatro a cinco meses para fazê-las e terminou ali. Foi nesse sentido que aceitei a candidatura, pensando que me dava a oportunidade de participar na preparação mas que era muito difícil que chegasse a ser eleito. Fui eleito e então participei com uma preocupação principal por certas questões que me interessavam como cristão, como evangélico. Por um lado, as questões que tinham a ver com a condição de liberdade e igualdade religiosas que é o tema mais importante, já que nossa constituição era ainda uma constituição muito católica, com artigos que vinham do tempo do padroado. Então eu acreditava que havia modificações que eram necessárias. Algumas puderam ser feitas, outras não. E por outro lado, me interessava também toda a questão que tinha que ver com a distribuição do poder, ou seja, a inclusao na Constituição de formas diretas e semidiretas de democracia, que permitissem maior participação ao povo; e os temas que tinham a ver com os Direitos Humanos de toda ordem, isto é, direitos políticos mas também direitos sociais e bem particularmente o tema dos direitos dos povos indígenas. Participei principalmente nas comissões internas da Assembleia que tinham a ver com esses temas dos novos direitos, das formas de participaçao política e da questão religiosa. Nesse sentido, foi uma experiência muito positiva, ainda que eu tenha gostado de algumas coisas que surgiram da Assembeia, e de outras não; mas isso acontece quando se participa de um processo como este.


Publicado originalmente na Novos Diálogos<http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=801>:http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=801:

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