segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O discipulado, os evangelhos e o metodismo

O discipulado, os evangelhos e o metodismo



Tema controverso, complexo e que – pelo menos – nos últimos 20 anos tem ganhado cada vez mais espaço nas igrejas no Brasil e no mundo. Assim se apresenta o desafio do discipulado. Mais que uma ordenança bíblica e um estilo de vida o assunto envolve a revisão de um sistema teológico, eclesiológico e pastoral desenvolvido na Igreja Metodista durante as três últimas décadas. Mas o que podemos compreender sobre a proposta de Jesus sobre o discipulado em harmonia com os evangelhos[1]?

Primeiramente é necessário explicitar que a designação “Ide e fazei discípulos” é um tema específico do evangelho de Mateus, que além de outras coisas trabalha numa perspectiva judaica em que o tema do discipulado está em conexão com o imperativo “segue-me” utilizado entre os rabinos e mestres judeus na formação da comunidade de seguidores dedicados em servir a YAWÉ e estudar a Torah, através de novas hermenêuticas e aplicações no cotidiano.

Em todo o caso, o imperativo é tema da “grande comissão” (Mateus 28, 18-20), que além de conter forte conexão com o universo judaico, expressa uma mensagem específica de Jesus à comunidade de Mateus, principalmente pelo ambiente vivido em Jerusalém depois do ano 70 EC, período em que a cidade viveu sob forte tensão por conta de conflitos com o Império Romano (LUZ, 2005, p.560). Nesse sentido, o “fazer discípulos” relaciona-se muito mais com o contexto do Judaísmo formativo do que numa ordenança de fazer seguidores de determinado líder ou determinada filosofia. “A comunidade de Mateus, presenciou e, obviamente, esteve ela própria envolvida nesse processo de consolidação do judaísmo pós-70, representado inicialmente pelo chamado judaísmo formativo” (OVERMAN, 1997, p.44).

O tema do discipulado em Mateus tende a ser melhor compreendido por seus aspectos sócio-econômicos e religiosos do que como um “estilo de vida” ou forma eclesiológica, como muitas pessoas têm defendido nos últimos tempos[2]. Entretanto, não é por isso que vamos abolir a filosofia de fazer discípulos e pregar o evangelho. Apenas precisamos seguir as ordenanças pari passu sem negligenciar suas implicações de justiça social, inclusão, profetismo e luta por uma realidade social igualitária como relata Mateus.

O discipulado na perspectiva mateana envolve um protesto acentuado contra Roma e as politicas econômicas de espoliação e marginalização da população empobrecida. A exemplo de Wesley e seus grupos societários, o discipulado em Mateus consegue ser espiritual sem ser espiritualista e social sem ser materialista, constituindo-se num desafio para os metodistas do século XXI que pretendem assumir o compromisso do discipulado no estrictus sentido do termo.

Além do desafio bíblico, teológico e pastoral fica o desafio denominacional de honrar a herança wesleyana de compromisso social e espiritualidade engajada na restauração da nação de da Igreja em particular, “espalhando a santidade bíblica pela terra”.

Em relação ao evangelho de Marcos pouca coisa podemos extrair sobre a temática do discipulado. Devido a seu conteúdo sucinto não sobram muitas alternativas para se fazer as inferências necessárias na compreensão do tema. O que podemos afirmar é que as palavras finais de Jesus, assim como no evangelho de Mateus, podem ser entendidas como ordenança ou ainda comissionamento e estão ligadas à proclamação da mensagem, expressa no versículo 15 do capítulo 16 (Keryxate) derivado de (Kerygma) proclamação.

Se compreendermos os evangelhos como relatos complementares e a Bíblia como literatura (ABADÍA, 2000) – ainda que utilizando a ordem canônica e não cronológica – observaremos que o discipulado na perspectiva de Marcos implica na proclamação da mensagem. Nesse aspecto, pode-se introduzir a necessidade da comunidade reunida para tal empreitada, no sentido de cooperação, isto é, a comunidade reunida e caminhando para a proclamação do novo tempo (éon) que é traduzido em categorias teológicas pela expressão Reino de Deus.

Interessante é como os relatos contidos nos evangelhos vão tecendo as trilhas da caminhada e sinalizando o caminho pelo qual a igreja, comunidade de Cristo, precisa trilhar para encontrar um equilíbrio na vivencia das ordenanças de Jesus. O discipulado exige um compromisso com a proclamação da mensagem e vivencia dos valores do Reino de Deus.

A necessidade da proclamação da mensagem não necessariamente implica em sua verbalização, uma vez que o evangelho pode ser pregado mesmo sem utilizar as palavras. Contudo, a herança wesleyana aponta para a prática da pregação ao ar livre, ou proclamação comunitária como parte do conjunto do discipulado, ensinado por Jesus.
A importância dessa pregação derivava de que muito do que nela se continha era apresentado a audiências – reunidas ao ar livre – que incluíam muitos pobres, que a Igreja desdenhara. Os sermões de John Wesley eram dirigidos a pessoa cujas roupas não lhes permitiam entrar na maioria das igrejas. É difícil subestimar o efeito de tal atrativo. Alguns historiadores pensaram que o movimento metodista salvou a Inglaterra de uma revolução social e política. Uma opinião dessa natureza deve ser conjetural; o que é certo é que o movimento deu a vastos setores da sociedade inglesa um novo sentido de autorrespeito, baseado no seu significado individual, no esquema de universo (WOODWARD, 1964, p.63).

Um dos elementos que facilitam a difusão da mensagem do evangelho é sua proclamação de forma comunitária, atingindo, inclusive, lugares que convencionalmente não se costuma ter acesso. Por isso, uma das instruções de Wesley era para que se fizessem reuniões domésticas com o intuito de convidar as pessoas para ouvir e compartilhar a palavra de Deus (SOUZA, 2009).

Daremos, agora mais um passo para entendermos como o evangelista Lucas trata a questão. Tanto o evangelho de Lucas, como o livro de Atos dos apóstolos – que segundo especulações seriam o conjunto de uma mesma obra (KOESTER, 2005) – têm como elemento central a revelação progressiva de Jesus por meio do caminho (hódos). Além de trabalhar numa lógica tida como “lógica dos avessos”(MESTERS; LOPES, 1998), o evangelista focou a dinâmica da caminhada, ou simplesmente “o caminho”.

Em ambos os relatos os acontecimentos mais significativas se dão no caminho. Isso incluindo o ministério de Jesus; a formação de igreja; a ação dos apóstolos e a difusão da mensagem pelos confins da terra (At 1,8). O caminho proposto por Lucas é repleto de desafios que provocam a comunidade dos discípulos a transcender e ceder espaço ao novo e ao contraditório. Como exemplo, podemos citar a inclusão dos samaritanos e sua exemplificação como servos de Deus e cumpridores de sua vontade.

O passo que Lucas dá em relação à temática do discipulado é de suma importância para compreendermos a proposta de Jesus, uma vez que, o mestre de Nazaré aponta para o contraditório ou revés como sendo o cumpridor da vontade e dos propósitos de Deus. Mais que incluir e conviver, o discipulado é tido como um caminho em que os diferentes se fazem iguais quando partilham do mesmo pão, sentam-se à mesa e socializam suas frustrações, expectativas e esperanças.

Um dos eixos do discipulado diz respeito a pluralidade da igreja. Não se pode conceber o ideal de um grupo homogêneo e monolítico. Jesus deixa isso bem explícito quando chama os doze discípulos para caminhar. Naquele grupo havia diversidade de pensamentos e concepções a respeito do Reino vindouro, mas isso não os impediu de caminharem juntos.

Mesmo no movimento proto-metodista, havia o respeito em relação a pluralidade de pensamento e opiniões, deixando-nos entender que a dinâmica do discipulado além de bíblica, precisa estar comprometida com as raízes wesleyanas (SOUZA, 2009).

O quarto evangelho apresenta o discipulado na mesma proposta dos milagres de Jesus descrito no “livro dos sinais”, compreendido entre os capítulos 2-12. Essas narrativas tratam de 7 milagres feitos por Jesus na instauração, ou sinalização do Reino de Deus. Como o próprio nome explicita os sinais são os elementos marcantes nessa caminhada.

De acordo com a teoria crítica, o evangelho de João termina no capítulo 20, sendo o capítulo 21 uma espécie de adendo ou apêndice. Dentro dessa perspectiva, podemos entender que a narrativa encerra com Jesus falando sobre os sinais que seguiriam os que cressem em sua mensagem. Por sinais, entende-se as ações concretas que intervém na vida das pessoas buscando valorá-las, restaurando lhes a dignidade e promovendo –as  como sujeitos agentes de sua própria história. Esse é o sentido que Jesus confere ao discipulado na perspectiva de João.

Disso podemos depreender que o discipulado não se restringe ao “fazer discípulos”. O tema, em conexão com os evangelhos, se constitui num desafio amplo e complexo que nos leva a indagar se temos nos comprometido, de fato, com a compreensão contida nos diferentes relatos sobre a vida e ministério de Jesus. Mais do que um modelo programático e sistemático, o discipulado bíblico possui implicações éticas e sociais que precisam ser levadas a sério.

Tony Evans ressalta que os elementos básicos relacionados ao discipulado espiritual e dinâmico não podem ser desenvolvidos paralelos à estrutura da igreja e precisam estar em conexão com: Deus, o próximo, a palavra e a proclamação.

Se não houver igreja local, não existe discipulado, porque nenhuma pessoa ou grupo pequeno dispõe de todos os dons e do poder necessários para dar a qualquer crente todos os recursos fundamentais ao desenvolvimento dessa pessoa. Isso tem de vir do corpo mais amplo, que de modo especial forma o corpo de Cristo (EVANS, 2000, p.10-11).

A opinião de Evans coaduna com os princípios do metodismo e com a estrutura da Igreja na forma de dons e ministérios. Uma vez que o discipulado deve estar integrado às atividades da igreja visando contemplar os quatro princípios expressos pelo autor e facilmente identificados  no ministério de Jesus.

Basicamente é isso que fica expresso quando fazemos a leitura conjunta dos quatro evangelhos e compreendemos o discipulado como uma estrutura que os perpassa de forma complementar, apontando o caminho que a igreja deve seguir e seus respectivos compromissos com a salvação, santificação e vida em comunidade abrangendo todas as suas dimensões, isto é, holisticamente.

A Igreja Metodista precisa reafirmar suas origens, wesleyanas, sobretudo, e trabalhar o discipulado numa perspectiva integral conectada com as demandas espirituais, sociais, eclesiológicas e pastorais das diferentes realidades vividas em nosso país, pois como vimos – ainda que de uma forma sucinta – há uma complementariedade no que tange a temática e não se pode restringi-la ou interpretá-la apenas baseada em um relato, mas necessitamos buscar suas conexões e desdobramentos com os demais.  Que Deus nos abençoe nessa empreitada.

Luis Carvalho

Referências:
ABADÍA, José Pedro Tosaus. A Bíblia como literatura. Petrópolis: Vozes, 2000.
EVANS, Tony. Discipulado espiritual e dinâmico: os quatro pilares indispensáveis para a maturidade cristã. São Paulo: Editora Vida, 2000.
KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. Vol. 2. São Paulo: Paulus, 2005.
LUZ, Ulrich. El evangelio ségun San Mateo. Vol. IV. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2005.
MESTERS, Carlos; LOPES, Mercedes. O avesso é o lado certo. São Paulo: Paulinas, 1998.
OLIVEIRA, Anderson de Lima. Acumulai tesouros no céu: estudo da linguagem econômica do evangelho de Mateus. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo (Dissertação de mestrado), 2010.
OVERMAN, J. Andrew. O evangelho de Mateus e o judaísmo formativo. São Paulo: Loyola, 1997.
SOUZA, José Carlos. Leiga, ministerial e ecumênica: a igreja no pensamento de John Wesley. São Bernardo do Campo: Editeo, 2009.
WOODWARD, E. L. Uma história da Inglaterra. Rio de Janeiro: Zahar, 1964.





[1] A terminologia evangelhos utilizada aqui diz respeito aos quatro registros canônicos sobre a vida e ministério de Jesus e não a proclamação da mensagem em si. Embora o teologicamente correto seja utilizar o termo no singular, a opção é proposital, pois visa fazer conexão com os distintos relatos.
[2] Para melhor aprofundamento do tema ver (OLIVEIRA, 2010).

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