Tive imenso prazer em ler este relato emocionante da vida,
do ministério e da família do reverendo Celsino Paradela, mineiro do fim do
mundo, autor de uma obra pastoral imensa e muito reconhecida pelos que dela
usufruíram, não estou certo se também pelos ocupantes de cargos e funções de
poder da sua Igreja Metodista do Brasil. O autor é igualmente pastor, seu filho
Clóvis, nascido quase no fim da fila de cinco homens e três mulheres que
permaneceram na fé cristã que aprenderam com seus pais.
O livro é bem escrito e bem humorado, uma homenagem do autor
ao centenário de nascimento do seu pai. Ele recorre a diversos depoimentos de
familiares, dos irmãos e irmãs em primeiro lugar, de colegas de ministério do
pastor Celsino, de amigos da igreja, de professores, com nível excelente de
expressão vernacular de todos eles. Por vezes, tive dificuldade para
identificar quem estava lendo: o autor ou um depoente. Isto porque ele adotou
dois tipos de destaques para os depoimentos. No primeiro, aparece a identidade
da pessoa no subtítulo e o texto segue na formatação similar ao texto do
próprio Clóvis. No segundo, o depoimento aparece em letra menor e margem recuada.
Caso o livro receba merecidas edições posteriores, valeria a pena equacionar
sua formatação de modo a facilitar a leitura.
Sou de uma família presbiteriana que tem alguns pastores que
começaram a atuar no início do século passado; outros, por volta dos anos 40 e
50. Minha geração teve candidatos ao ministério (é o meu caso), mas partimos
para outras formações e outra relação com nossas igrejas de origem. No meu caso
ainda, com a Igreja Metodista da qual me tornei membro por transferência no
contexto de minha breve experiência como estudante da Faculdade de Teologia de
Rudge Ramos no ano das múltiplas crises: 1968.
Mantenho uma relação mais ou menos próxima com a Igreja
Metodista nas últimas décadas. Penso que acompanhei suas opções, suas
orientações e seus desafios. Em razão deste quadro de referência, deste pano de
fundo, ao longo da leitura eu mantive um diálogo intelectual com o autor e com
o biografado, cuja trajetória me faz lembrar o semeador da parábola. O pastor
Celsino semeou todos os dias durante décadas; variaram os terrenos que
receberam suas sementes, as pessoas, as lideranças e as circunstâncias, como
ocorre na vida de qualquer pessoa. Porém, quantas igrejas e quantos metodistas
não se inscrevem na colheita vasta do que foi plantado por este pastor?
Celsino foi pastor de igrejas pequenas, tornou-as mais
numerosas em membros e trabalhos, fundou e regeu corais, deslocou-se pelo
território mineiro por todas as maneiras possíveis quase sempre com exclusão de
carros e ônibus. E pensar que quase sua postulação ao ministério não foi
acolhida porque era franzino!
Incomoda este julgamento do poder eclesiástico a respeito da
aparência, não do coração do jovem aspirante ao ministério. É o segundo caso de
que ouço falar. O rev. José Borges dos Santos Júnior, pastor presbiteriano, foi
presidente do Supremo Concílio desta igreja, professor do Seminário de
Campinas, além de pioneiro em programas de rádio. Pois bem, contou-me minha tia
Irany, que foi sua secretária por muitos anos, que ele foi rejeitado ao pastorado
metodista porque era não tinha um perfil físico adequado!
Os
relatos ora me provocaram alegria, ora me entristeceram; ora vontade de rir,
ora de chorar. Gostei de todos os depoimentos, mas seu neto Cleber foi muito
feliz ao escrever:
“hoje tenho orgulho muito grande de ser
neto de um homem trabalhador, que conseguiu formar e dar educação a tantos
filhos, e educou espiritualmente tantas famílias por tanto tempo. Os frutos
plantados por ele serão colhidos por muito tempo” (p. 290).
Criado em família rural, em condições sociais bem adversas,
não se pode afirmar que tenha melhorado de vida ao ter acesso aos estudos no
Grambery, instituição educacional metodista de Juiz de Fora. Nem se pode
afirmar tampouco que tenha obtida uma boa condição financeira como pastor.
Longe disto. Clóvis deixa claro que as dificuldades eram diárias. Certa vez
dona Clea ia reter os filhos em casa porque não tinham roupa adequada para uma
atividade em sua própria igreja. O problema foi resolvido pela solidariedade de
outras pessoas.
Jamais deixou de ter horta e galinhas nas casas pastorais
onde viveu com a família. A venda de verduras e ovos complementou a renda
familiar durante muitos anos. Os salários baixos nem sempre lhe eram pagos em
dia. Há um caso estridente: os administradores (a junta de ecônomos) de uma das
igrejas de que foi pastor, diante de uma crise financeira, não lhe pagaram alguns
meses de salários, e jamais se redimiram desta dívida. Para dar conta das
dificuldades advindas desta injustiça, o pastor Celsino vendeu um pequeno sítio
onde abrigara parentes.
Imagino que este pastor atuante - tão procurado por pessoas
que se encontravam diante de problemas de saúde, por exemplo – desempenhava
(por analogia) uma função de natureza pública, pois atendia as necessidades
alheias e não se beneficiava pessoalmente dos bons resultados: buscava vagas em
hospitais, hospedava-as em sua casa, dava-lhes segurança e apoio. Fazia-o em
decorrência da sua visão do pastorado e de sua missão evangelizadora. A memória
destas ações fermenta em depoimentos emocionados.
No início da leitura, eu me perguntei: o pastor Celsino teve
amigos católicos? E de outras denominações evangélicas? Sim, ele os teve, e as
informações são abundantes. Ele foi amigo de presbiterianos, batistas e
assembleanos, teve relações meio atravessadas com adventistas em razão de seu
proselitismo agressivo (p. 84, 94,132,171, 274). Teve amigos católicos muito
chegados à família, inclusive um padre – e muito se apreciavam (p. 70, 119).
E teve conflitos com um e outro padre. Eram os tempos de
estranhamento entre estas igrejas cristãs, certamente antes do Concílio do
Vaticano II. Alguns conflitos, típicos de cidade pequena, quase chegaram à
violência contra a qual se colocou o pastor Celsino (p. 102-107, 111).
A guarda do domingo é sempre uma questão complicada. Fácil,
aparentemente, para quem impõe as regras, nem sempre para quem é obrigado a
cumpri-las. O mesmo com relação a dançar (houve quem não gostasse que uma
menina dançasse com um palhaço que divulgava a chegada de um circo), ouvir
rádio ou ver televisão aos domingos. Rifa, então, nem falar (p. 154).
Inicialmente uma coisa mundana que criava aversão, a televisão foi uma bênção
(sem exageros) no final da vida do pastor Celsino, apaixonado cruzeirense. Isto
porque ele já se encontrava desvestido da camisa de força dos papéis pastorais:
livre para ver televisão!
Faço parênteses: eu adorava futebol na minha infância,
adolescência e juventude, como ainda hoje, e nunca me conformei com a proibição
de jogar aos domingos. Tinha de dar bom testemunho, danando-se minhas
convicções e o livre arbítrio. Deixei de me comprometer com equipes por este
motivo. Um pastor da minha infância (que casou meus pais, me batizou e fez
minha profissão de fé) saiu-se com esta diante da minha questão se era pecado
jogar futebol no domingo: “se for brincadeira, não; se for para valer, é
pecado”. Casuísmo religioso de um pastor culto e dedicado que tinha de dar nó
em pingo d´água.
Celsino e sua esposa Clea educaram os filhos com o apoio de
instituições metodistas, mas também sem elas. Tiveram este objetivo, como
milhares de casais protestantes para quem a educação possibilita a leitura da
Bíblia, em primeiro lugar, e prepara os filhos para o futuro. Clóvis desfila as
profissões, os graus acadêmicos de toda a família: irmãos e irmãs, noras e
genros, filhos e filhas, sobrinhos e sobrinhas. Uma linha ascensional é nítida:
os filhos estudaram mais do que os pais porque tiveram mais oportunidades,
havia mais escolas; todavia, sem o impulso dos pais, provavelmente não teriam
ido tão longe (p. 126-127, 263-265).
Vou comentar pontualmente alguns aspectos da vida
profissional do pastor Celsino.
- Relação com o poder eclesiástico nos níveis local, regional e nacional. Os relatos remetem ao poder da igreja local como uma mistura de estruturas presbiteriana (conselhos, juntas) e batista ou congregacional (o poder do conjunto dos membros ativos). Pessoas influentes que permanecem durante muitos anos em posições de poder, tendendo a um conservadorismo estrutural; famílias que disputam posições de poder. Um exemplo interessante: uma família deixa uma igreja local e funda uma igreja presbiteriana! A divisão que levou à criação da Igreja Metodista Wesleyana resulta, segundo Clóvis, de um conflito de famílias.
- Em que pese sua autoridade moral e legal, o pastor depende destes outros níveis. Com relação à região, o poder é desempenhado pelo bispo que, sobretudo, nomeia os pastores para as igrejas e exerce a disciplina. Celsino nem sempre foi designado para a igreja que queria, nem sempre ficou naquela em que se encontrava bem. Isto em razão do poder do bispo, submetido, por sua vez, aos grupos de pressão. Não fica claro como o pastor Celsino se relacionou com o poder regional. Se ele jamais quis ser bispo, quem ele apoiou, a quem se opôs? Por que motivos?
- A Igreja Metodista foi tomada por crises importantes durante seu pastorado. Especificamente, fechou sua Faculdade de Teologia em 1968, renovou o Colégio Episcopal, reabriu esta escola e avançou em seu caminho ecumênico; anos depois, a crise diz respeito às tensões e disputas pelo poder entre tradicionais e carismáticos, sendo que diversas orientações teológicas vicejam no meio-campo. Como Celsino viveu a crise de 1968?
- Ele não se engajou no ecumenismo, mas foi tolerante com outras denominações e com o catolicismo. Virtude rara a tolerância, mesmo entre ecumênicos. Como ele se relacionou com a orientação fortemente ecumênica da Igreja Metodista?
- Dividir para multiplicar: Celsino foi estrategista no desenvolvimento das igrejas de que foi pastor. Estimulou a chegada de jovens a funções de direção; abriu-lhes o púlpito; realocou os membros em congregações por critérios geográficos (antes e depois de um rio, por exemplo) para que se tornassem igrejas.
Deixo o pai para comentar uma bela ideia do filho-autor.
Trata-se de um projeto eclesiástico semelhante à confederação entre países
independentes: um acordo para a realização de objetivos comuns, mantendo-se os
estados membros (como seria com as igrejas) sua plena soberania no tocante a outros
aspectos. Clóvis define o problema e a solução:
“Se somos um povo
só, o que nos impede de nos unirmos novamente? Por que não somos uma só igreja?
Tenho um sonho, uma visão que Deus me deu: sonho com uma confederação metodista
no Brasil, composta por federações (Igrejas) autônomas, porém unidas nas
doutrinas básicas do metodismo histórico, em projetos missionários e nas ajudas
mútuas, somando forças para a implantação do Reino de Deus. Cada federação
(Igreja) poderia manter sua organização eclesiástica própria, suas
peculiaridades, mas teria uma forte relação na visão e prática do Evangelho à
luz do metodismo wesleyano” (p. 191).
Um sonho? Talvez. Mas pode ser uma semente.
Eliezer Rizzo
http://www.filhosdagraca.com.br/index.php/component/k2/item/52-casa-meu-pai
Um comentário:
Parabéns ao autor pelo conteúdo e pela capa que também ficou lindíssima.
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