TRAVESSIAS TORTURADAS - Resenha
Eliézer Rizzo de Oliveira
eliezer_rizzo@uol.com.br
Eu conhecia Dermi Azedo de referência no meio ecumênico. Mas nunca tínhamos tido a oportunidade de uma aproximação e apresentação. Sem sucesso, eu procurara seu livro “Travessias torturadas” 1 em diversas livrarias.
Eu me encontrava na mesa dos trabalhos quando vi Dermi entrar no auditório em uma cadeira de rodas. Emocionado, deixei da mesa e fui cumprimentá-lo. Trocamos algumas palavras, senti que havia tantas experiências e referências comuns que parecia que éramos amigos há tempos.
Se eu conhecia o perfil do autor enquanto jornalista e militante de direitos humanos, o livro que ora comento acrescenta muitas informações sobre sua vida e militância política. A primeira que me acorreu, faz alguns meses, emocionou-me sobremaneira. Foi a respeito da perda de seu filho cuja história é de arrepiar. Dermi e esposa haviam sido presos pela equipe do fascínora delegado Sérgio Fleury, do DEOPS de São Paulo. Além de sofrerem nas mãos deste ícone da repressão política nos termos mais abjetos e ilegais, mais atentatórios aos direitos humanos, Dermi e esposa viram seu filho Carlos Alexandre, um bebê, sofrer “em seu frágil corpo de criança a brutalidade da repressão fascista dos porões do DEOPS/SP”. O menino carregou consigo as dores e as consequências de tal violência. Adulto, afastou-se da vida que lhe era demasiadamente pesada.
Dermi escreveu ao seu filho uma carta lindíssima que divulgou no Facebook, onde a li. A partir daí, passamos a ter algum contato. Portanto, foi com este pano de fundo que tive o prazer de conhecê-lo em Belém para um debate sobre um delicado tema dos direitos humanos em nosso país que é a Comissão da Verdade.
Dermi escreve muito bem, de modo claro e elaborado. Misto de texto jornalístico com texto acadêmico, ou melhor, com as virtudes de ambos.
O livro, que é uma referência sobre a Igreja Católica sob o regime militar, abre-se com uma declaração de amor à democracia:
“A democracia formal não pode iludir-se sobre o caráter efêmero e susceptível das democracias de Estado de Direito. Trata-se de uma planta bela e fraca, por natureza, que exige ser cuidada cada minuto do dia; do contrário, a falta de água felicitará a tarefa dos abutres e todas as nossas serão exterminadas. No entanto, existem sinais de esperança. Espero que este livro contribua para reforçar a esperança em um Brasil justo, e fraterno, e solidário” (p. 8-9).
Dermi participou do movimento estudantil dos anos 1960 que se notabilizou por inúmeras manifestações grandiosas. Foi preso no congresso da UNE em Ibiúna, interior de São Paulo, sobre o qual a repressão se abateu. Ele relata sua prisão, sua fuga para o Chile com apoio da Igreja, dedica páginas muito significativas a pessoas que foram atingidas pela repressão, a exemplo do dominicano Frei Tito, que tirou sua própria vida no exílio.
De retorno ao país, foi secretário de Educação de Currais Novos, sua potiguar cidade Natal, função da qual foi expelido por pressão de autoridades militares (p. 35-36).
Atuou no movimento ecumênico de direitos humanos em torno da figura magnífica do Cardeal D. Paulo Arns.
Repressão política.
Dermi nos leva a um passeio por diversos temas dos direitos humanos, das igrejas cristãs (a Católica, em particular) e da repressão durante o regime militar. O capítulo “Estrutura e funcionamento da repressão” é muito relevante, pois contém informações pertinentes e ajuda na compreensão deste fenômeno único que foi a dominação militar sobre o Estado, o governo, as instituições sociais. Acrescento, dominação sobre a própria vida das Forças Armadas e dos militares enquanto funcionários.
Ele examina o papel do Serviço Nacional de Informações, criado pelo primeiro general presidente Castelo Branco por proposição do general Golbery do Costa e Silva, que posteriormente teria considerado sua própria obra como um monstro. O autor equivoca-se numa informação de menor importância ao identificar o general Costa e Silva (ministro da Guerra do primeiro governo militar) como chefe do SNI, de onde teria saído para ocupar a Presidência da República. De fato, o general Figueiredo cumpriu este roteiro no governo Geisel, a quem sucedeu; antes dele, o general Médici foi chefe do SNI e sucedeu Costa e Silva (p. 47).
Importa mesmo é que sua análise do SNI é muito bem fundamentada, assim como de toda a estrutura nacional de informações cujo epicentro era o próprio SNI. O mesmo no tocante aos aparelhos repressivos, cujas informações Dermi remete em nota de rodapé ao coronel Brilhante Ustra, autor do livro “Rompendo o silêncio” com o qual pretendeu oferecer resposta ao “Brasil Nunca Mais” (p. 51). Destaco a liberdade intelectual com que Dermi buscou informações no livro de um militar que é verdadeiro ícone dos tempos e procedimentos repressivos. Um pesquisador competente e independente deve agir precisamente deste modo.
Dermi pergunta quais teriam sido as motivações de policiais e militares a atuar nas estruturas da repressão política. Ele identifica quatro motivações “puras”: “razões de Estado”, “obediência devida”, “vingança explícita” e “perspectiva de ascensão profissional” (p. 55-56). Imagino que estas motivações possam ter-se combinado de
maneiras diferentes conforme os casos. E conheço militares que se recusaram a participar deste esquema em razão de suas convicções democráticas. Um deles disse-me que colocaria sua carreira a prêmio, mas jamais seria um torturador.
As influências de Israel, Estados Unidos e França no sistema de repressão política são apontadas pelo autor com muita propriedade. Estas influências disseram respeito a métodos de investigação e de tortura, que os repressores brasileiros combinaram com métodos ainda hoje usuais na atividade policial, dentre eles o emprego do pau de ara que vem da época da escravidão.
Repressão contra a Igreja Católica Romana.
A fonte principal desta parte do livro, conforme explica a nota 1 (p. 62), é um documento que o CEDI (Centro de Ecumênico de Documentação e Informação) elaborou, em 1978, sobre o mesmo tema a pedido do Cardeal Arns e do Bispo Balduíno. Outra fonte importante é “Brasil Nunca Mais”.
O autor detalha as investidas do regime militar contra Igreja: calúnias, intimidação, espionagem, prisão, tortura, processos judiciais, censura prévia, sequestros, etc. Um processo permanente de difamação, com a colaboração de setores do alto clero (veremos a seguir), buscou manchar as figuras dos cardeais Arns e Helder Câmara, além do bispo Pedro Casaldáliga.
Os números de vítimas são expressivos: 122 clérigos e 273 leigos foram presos de 1968 a 1978, além de 22 pessoas desaparecidas, padres estrangeiros expulsos do país e dois religiosos banidos.
A Rádio 9 de Julho, da Arquidiocese de São Paulo, foi fechado pelo governo militar em novembro de 1973. Apenas em 1999 ela foi restituída à Igreja pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.
Brasil Nunca Mais
Dermi Azevedo reconstrói a saga deste projeto que retirou, literalmente, informações de milhares de processos que se encontravam no Superior Tribunal Militar.
“A ideia original do projeto coube ao pastor presbiteriano Jaime Wright, numa tarde de agosto de 1979, quando se dirigia, acompanhado de alguns amigos, ao aeroporto de São Paulo para receber o educador Paulo Freire, que voltava ao país depois de 15 anos de exílio” (p. 75).
O pastor e o arcebispo de São Paulo obtiveram apoio financeiro do Conselho Mundial de Igrejas para um trabalho que envolveu cerca de trinta advogados e outros profissionais, como jornalistas e sociólogos (p. 76). Fotocopiados em Brasília, os documentos eram analisados em São Paulo.
A Editora Vozes publicou dois volumes com os resultados deste imenso trabalho: “Brasil Nunca Mais” e “Perfil dos atingidos”. Emerge uma estrutura da repressão, na qual se destacam 444 torturadores e inacreditáveis 285 formas de torturas, que provocaram o sofrimento de 17 mil presos constantes dos processos (p. 77). Como se vê ao longo do livro, o sofrimento e a perseguição foram impostos a leigos e cléricos, dentre estes o bispo D. Adriano Hipólito, “sequestrado e seviciado pela repressão” (p. 132).
Um anexo é dedicado ao “bárbaro trucidamento do padre Antônio Henrique”: ele foi “amarrado, arrastado, recebeu três tiros na cabeça e algumas torturas; todos os golpes atingiram exclusivamente a cabeça e o pescoço” (p. 141). Este assassinato ocorreu em março de 1969, três meses e meio após a decretação do AI 5 que possibilitou à repressão ampliar o âmbito de suas atividades por todo o país e com uma profunda convicção de impunidade. Parecia a muitos que a ditadura duraria para sempre, ou, ao menos, por muitos e muitos anos (projeto Brasil Potência).
A nota do Governo Colegiado da Arquidiocese de Olinda e Recife denunciou as perseguições e a morte do Padre Antônio Henrique, fez votos de continuação do seu trabalho “pelo qual doou a vida”, de “conversão de seus algozes” e, pastoralmente, afirmou: “pedimos a Deus perdão para os assassinos, repetindo a palavra do Mestre: ‘Eles não sabem o que fazem’”. Um clamor é elevado pelos signatários, a começar do Dom Helder Câmara, “para que, ao menos, não prossiga o trabalho sinistro deste novo esquadrão da morte” (p. 143).
O autor aponta pessoas, nos âmbitos eclesiásticos cristãos (sobretudo católicos), que cooperaram com a repressão política como delatores, espiões ou torturadores. Foram jornalistas, membros do alto clero, membros de entidades ultra-conservadoras. O autor relaciona estes procedimentos repressivos com a ampliação da presença política da Igreja nos países da América Latina. O contexto da Guerra Fria propiciou aos Estados Unidos o emprego de técnicas de espionagem e repressão. Esta potência estimulou de diversos modos a repressão no continente. Repressão nacional e cooperação internacional: a Operação Condor, que o autor define com precisão, é um paradigma:
“destinada não apenas a recolher informações sobre os dissidentes e sobre as organizações opositoras aos regimes militares, mas também para executar tarefas de eliminação de líderes” (p. 92).
O caso mais gritante de cooperação do alto clero com um regime militar é o argentino, ao qual o autor dedica informações precisas. Há testemunhos de pessoas que, na condição de presos políticos, foram “torturadas na presença de sacerdotes católicos” (p. 94).
Ao mesmo tempo, o autor esclarece a demissão de um prelado brasileiro: o Papa Paulo VI não gostou do relatório do Cardeal Agnelo Rossi sobre a situação dos direitos humanos em São Paulo e o demitiu: “Esse foi o primeiro caso dessa natureza na história mais recente do pontificado romano” (p. 97).
Enfim, muito haveria ainda a comentar sobre este livro digno, oportuno e profundamente identificado com a causa dos direitos humanos e da democracia. Da dor o autor retira a serenidade que impressiona. Recorro a algumas de suas palavras finais:
“Em todas essas andanças, sempre tentei ser amoroso. Fracassei muitas vezes. Mas continuo pensando que, sem amor, a vida se esteriliza. (...) Se fosse preciso recomeçaria tudo. (...) E continuaria a sonhar com um mundo novo, de homens e de mulheres novos” (p. 154).
1 Dermi Azevedo. Travessias torturadas. Direitos Humanos e ditadura no Brasil. 1964-1985. 1ª ed. Natal, RN: Comitê Estadual pela Verdade, Memória e Justiça-RN, 2012, 162 p.
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